Execução do PRR ameaça agravar desigualdades no acesso a habitação

Luísa Pinto, Público

Há 113 municípios que ainda não conseguiram concluir estratégia local para concorrer a fundos. Câmaras que estão a tentar implementar as respetivas estratégias locais de habitação para chegarem rapidamente aos 1.200 milhões de euros inscritos no PRR para garantir habitação digna relatam dificuldades. Sem essas estratégias aprovadas não há financiamento. “Os municípios não partem todos do mesmo lugar. Têm pesos institucionais e recursos técnicos e financeiros completamente distintos”, alerta uma equipa de investigadores que analisou vários dados e que concluiu que os fundos do PRR para habitação arriscam acentuar desequilíbrios no país. Autarcas falam de vários obstáculos. Há cerca de 80 mil agregados em carência habitacional à espera.

Este artigo recebeu o Prémio ANMP de Jornalismo e Poder Local 2023 em 19 de setembro de 2023.

Há 80 mil agregados em carência habitacional em todo o país. No terreno, avançam soluções para dois mil. Mas as famílias em situação de indignidade habitacional não têm as mesmas condições de partida.

O presente trabalho desenvolveu-se no âmbito do projecto “Habitação como 1.º Direito” (2020.01858.CEECIND), sob coordenação de Sílvia Jorge, em curso no Centro para a Inovação em Território, Urbanismo e Arquitectura do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa (CiTUA/IST-UL), com financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. A espacialização e interpretação dos dados foram realizadas em parceria com Aitor Varea Oro, do Centro de Estudos em Arquitectura e Urbanismo da Universidade do Porto.

 

A componente de apoio no acesso à habitação prevista no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), fortemente alicerçada no pilar da política da União Europeia da coesão social e territorial, permitiu, até agora, de acordo com o Ministério das Infra-Estruturas e Habitação, a solução para 2.000 fogos em 38 municípios, num investimento de 145 milhões de euros. Tendo em conta que o PRR prevê o apoio com financiamento a 100% às primeiras 26 mil famílias — total de situações de precariedade habitacional extrema sinalizadas em 2018 — e um investimento de 1.200 milhões de euros, tais números traduzem taxas de execução muito baixas, tanto no número de situações de famílias a resolver, como no valor do investimento a apoiar.

Mais preocupante do que esta baixa taxa de execução são as dificuldades sentidas no terreno pelos municípios que estão a tentar implementar as respetivas estratégias locais de habitação (ELH) para chegar rapidamente a este financiamento. No entanto, nem os agregados em situação de indignidade habitacional nem os municípios que se prepararam para a corrida têm a mesma condição de partida. “Os municípios não partem todos do mesmo lugar. Têm pesos institucionais e recursos técnicos e financeiros completamente distintos, o que pode conduzir à reprodução de cenários de desigualdade e a assimetrias crescentes”, limita-se a constatar Sílvia Jorge, investigadora do Centro para a Inovação em Território, Urbanismo e Arquitectura do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa.

O levantamento nacional das necessidades de realojamento feito pelo Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) em 2018 e a existência no terreno do programa 1.º Direito, incluído na Nova Geração de Políticas de Habitação, foram medidas que precederam o PRR e que municiaram o Governo com o necessário trabalho de casa para apresentar a candidatura a Bruxelas. E a inclusão de 1.200 milhões de euros no PRR foi justificada com a necessidade de “relançar e reorientar a política de habitação em Portugal, […] através do reforço do parque habitacional público e da reabilitação das habitações indignas das famílias de menores recursos”.

A possibilidade de haver financiamento a fundo perdido, anunciada pelo ministro Pedro Nuno Santos em Fevereiro de 2021, tornou oficial a corrida. E o entusiasmo dos municípios tornou-se particularmente visível pelo número de acordos de colaboração assinados com o IHRU a partir dessa data.

A possibilidade de haver financiamento a fundo perdido é uma absoluta novidade nos programas de habitação desde que o direito à habitação foi consagrado constitucionalmente, nota Luísa Salgueiro, presidente da Associação Nacional de Municípios. E poderia trazer o músculo que faltava para avançar na resolução de problemas estruturais.

Infografia do Público, fonte IHRU

 

Só metade com estratégia

Ter uma ELH (Estratégia Local de Habitação) aprovada é condição de acesso ao financiamento previsto no PRR. Até 11 de Março, havia 167 municípios com estratégias homologadas pelo IHRU e estavam sinalizados perto de 80.000 agregados em situação de indignidade habitacional, segundo a recolha levada a cabo por Sílvia Jorge. Ou seja, com apenas 54% dos municípios com uma ELH aprovada, há três vezes mais agregados em carência habitacional do que aqueles que podem ser financiados pelo PRR. E isto numa altura em que quase metade dos concelhos fica de fora deste financiamento, por ainda não ter entregado a sua estratégia.

Infografia do Público, fonte IHRU

Questionado pelo PÚBLICO, o Ministério das Infra-Estruturas e Habitação prefere sublinhar que o “compromisso do Governo associado ao 1.º Direito não tem paralelo com qualquer outro instrumento criado no passado para dar resposta às questões da habitação”. “Com este instrumento, salvaguardam-se todas as necessidades identificadas pelos municípios nos seus territórios, num esforço conjunto de acabar com as carências habitacionais”, afirma fonte do gabinete de Pedro Nuno Santos, recordando que há investimentos provenientes dos fundos europeus e do Orçamento do Estado, no caso de projectos anteriores a Fevereiro de 2020, garantindo “que o 1.º Direito se manterá depois de esgotado o PRR”.

O que parece evidente, sinaliza Sílvia Jorge, e também José Carlos Guinote, outro investigador que se tem dedicado a acompanhar o tema, é que os fundos europeus dificilmente vão contribuir para aliviar os desequilíbrios em termos de coesão social e territorial que existem no país em termos de habitação. “Há muita gente que vai ficar para trás. Há 113 municípios onde vivem 1,6 milhões de portugueses que não concluíram sequer as suas ELH. A grande prioridade desta nova geração de políticas era não deixar ninguém para trás e, face às escolhas feitas pelo Governo, está a saldar-se por um fracasso”, considera Guinote. Que sublinha que a indignidade habitacional está por todo o território e o dinheiro necessário para a erradicar não está igualmente distribuído. “Nem vai chegar a toda a gente. Apenas no tempo longo do futuro — para citar o ministro da Habitação — haverá respostas, se chegarem a existir, para aqueles que há muito foram deixados para trás”, afirma. Guinote defende que é preciso um Programa Nacional de Habitação “a sério” e vontade política para resolver o problema. “Essa vontade determina a mobilização dos recursos necessários, ou então vamos manter quase tudo na mesma. Mantendo o nível de financiamento deste orçamento — ora isso está longe de estar garantido — nem em 2040 o problema estará resolvido”, antecipa. Caso a execução do PRR venha a concretizar-se, o financiamento poderá, mesmo, contribuir para acentuar os desequilíbrios no terreno. E as situações de precariedade habitacional mais extremas poderão ficar por resolver.

Nas respostas enviadas às questões colocadas pelo PÚBLICO, o Ministério das Infra-Estruturas recorda que as situações a que o 1.º Direito quer dar resposta são muito variadas e que é normal que as mais difíceis demorem mais tempo a resolver. “E se é certo que cada município definiu a sua priorização de acordo com as necessidades que achou mais urgentes, também sabemos que muitas vezes são as situações mais difíceis e complexas de resolver que demoram mais tempo”, alegam.

O que parece certo, concluiu Sílvia Jorge, é que o somatório de muitas ELH aprovadas não resulta, por si só, “numa estratégia nacional, nem numa maior coesão territorial”.

Diferentes velocidades

Enquanto o Programa Especial de Realojamento (PER) estava dirigido apenas para o universo das áreas metropolitanas, o 1.º Direito pode ser aplicado a todo o país. Com 54% dos municípios com ELH, já é possível ter um retrato geral dos problemas de habitação no país e perceber como eles são heterogéneos e percorrem todo o território. Das 167 estratégias entregues, 85 localizam-se em territórios de baixa densidade, 75 em territórios de alta densidade, seguindo a classificação da deliberação da CIC Portugal 2020 dirigida à aplicação de medidas de diferenciação positiva dos territórios — que prioriza os de baixa densidade. Outras sete referem-se às ilhas da Madeira e dos Açores. As maiores percentagens de municípios com ELH aprovadas ocorrem na região norte (67 num universo de 86 municípios) e de Lisboa (14 num universo de 18). Tendo em conta que, no quadro do PRR, as respostas habitacionais previstas têm de estar concretizadas até 2026, percebe-se a pressa e a corrida gerada. O vereador da Habitação do Porto, Pedro Baganha, enumera: “Desde que se identifica uma necessidade é preciso encontrar o terreno, contratar o projetista, fazer o projeto, obter licenciamento das entidades, lançar concurso de empreitada, executar a obra. Demora no mínimo quatro anos, por mais rápido que tudo corra.” Daqui a quatro anos já é 2026.

Segundo o levantamento conduzido por Sílvia Jorge, apenas 15% das câmaras desenvolveram a sua ELH com recursos próprios, isto é, com a equipa técnica da casa. A grande maioria recebeu apoio financeiro para contratar uma equipa externa para a desenvolver. O que indicia que pode haver dificuldades burocráticas e administrativas no cumprimento das regras que, no caso do PRR e na área da eficiência energética, por exemplo, são muito exigentes.

“Estes municípios podem posteriormente não ter recursos técnicos suficientes para implementar estes instrumentos, nomeadamente para instruir as candidaturas, inscritas em processos burocráticos e complexos que requerem geralmente tempo e equipas em dedicação exclusiva”, nota. Outro fator são os recursos financeiros — os municípios são reembolsados de um investimento que têm de fazer previamente, e nem todos têm tesouraria que o permita.

País 1 e País 2

Com estes prazos apertados, o critério tem sido sobretudo o da celeridade. Mas em termos de coesão social e territorial, qual o impacto da adoção deste critério? Na procura de resposta a esta pergunta, os investigadores Sílvia Jorge e Aitor Varea Oro, este último do Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, criaram dois cenários extremos e irreais, mas ilustrativos.

Nota: Os municípios cobertos por cada cenário foram determinados em função dos dados recolhidos dos respetivos documentos públicos a que se teve acesso. Cada um dos cenários foi representado sobre a mancha edificada de Portugal continental relativa a 2018, disponibilizada pela Direcção-Geral do Território. Por gestão de espaço, o mapa correspondente ao cenário 1 excluiu o município do Funchal, também não representado no cenário 2, a par de Câmara de Lobos, também na Madeira, e de Lagoa, Santa Cruz das Flores, Vila do Porto, Nordeste, Vila Franca do Campo, nos Açores.

Num primeiro caso, imaginaram um país onde se daria resposta aos municípios que têm um maior número de agregados em indignidade habitacional identificado (número absoluto por município); num segundo caso essa resposta seria dada aos municípios com maior percentagem de agregados nesta situação face ao total de agregados que habitam o respetivo concelho. A espacialização destes cenários permite perceber que no primeiro, em que se prioriza a resposta aos municípios com maior número de situações, os apoios serão absorvidos na sua maioria pelas áreas metropolitanas, ou seja, territórios de alta densidade. Já os municípios com maior percentagem de agregados em indignidade habitacional localizam-se em grande parte em territórios de baixa densidade, tendencialmente com menos recursos técnicos e financeiros disponíveis e, à partida, menor peso político.

No país 1 haveria apoio para 10 câmaras, que sozinhas totalizam cerca de 37.500 situações, e estão quase todas na Área Metropolitana de Lisboa. No país 2 era possível abranger 42 municípios para chegar a 36.662 situações. Este cenário, comparativamente ao anterior, promoveria à partida maior coesão social e territorial mais em linha com as orientações europeias em que assenta o PRR. Mas este cenário implicaria um apoio técnico complementar por parte do Governo central aos municípios com menos recursos. Por outro lado, também iria exigir uma estrutura governativa ela própria também descentralizada, capaz de acompanhar e apoiar de perto esta maior dispersão territorial.

A realidade não estará num ou noutro cenário traçado, mas tudo aponta para que esteja mais próxima do primeiro, uma vez que a corrida ao financiamento do PRR beneficia os municípios que, à partida, têm mais recursos e maior peso político.

Nota: no caso do país 2, não existem informações, à escala do concelho, para cerca de 81% dos municípios, no caso das vendas, e para 53%, no caso das rendas. Esta ausência inflaciona, por um lado, o valor médio dos municípios considerados neste cenário, aproximando-o artificialmente do país 1; por outro, denuncia uma assimetria no acesso ao 1.º Direito, uma vez que estes valores servem de base ao cálculo do financiamento a disponibilizar.

Se assim for, “do ponto de vista da coesão social e territorial, estão-se a alimentar os desequilíbrios entre as áreas metropolitanas e o resto do país, entre o litoral e o interior, entre os territórios de alta e baixa densidade”. “Os holofotes mantêm-se nas áreas metropolitanas e nas grandes cidades”, remata Sílvia Jorge.

Da mesma forma, do ponto de vista da estrutura governativa, a gestão mantém-se hoje centralizada no IHRU. O Governo diz que o instituto “está em permanente articulação com os municípios”. E dá como exemplo a sessão semanal que tem com as autarquias para, entre outras coisas, “ajudar os municípios a compatibilizar os seus projetos com os requisitos de eficiência energética”. “Isto não invalida a análise (em curso) de instrumentos complementares de apoio aos municípios”, admite o gabinete de Pedro Nuno Santos.

Quanto ao esforço de descentralização, diz que o Programa 1.º Direito “é o melhor exemplo de uma política descentralizada na promoção de respostas para a nossa população, precisamente por considerarmos que é nessa escala que melhor se conhecem as necessidades de cada família”. “O IHRU e também a Comissão Europeia escrutinam a forma como esse financiamento é aplicado, com base nos objetivos e requisitos definidos de forma necessariamente universal, para garantir que estamos efetivamente a resolver problemas estruturais da população, sem que isso pressuponha uma intromissão na forma como cada município define as suas necessidades, prioridades e soluções habitacionais”, argumenta. O ministério recorda que até ao final do ano devem arrancar os vários projetos-piloto definidos pelo grupo de trabalho “Habitar no Interior”, em parceria com o Ministério da Coesão Territorial, cuja execução pretende aproveitar instrumentos como o Programa 1.º Direito para uma estratégia mais abrangente de promoção do interior. “E que passa necessariamente por intervenções noutras áreas fundamentais como o emprego ou as infra-estruturas, onde há também um esforço significativo de promover essa coesão.”

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Luísa Salgueiro, presidente da Associação de Municípios:

“A descentralização na habitação é apenas parcial”

No pacote de descentralização de competências, e na tentativa de dar maior autonomia às câmaras municipais, como considera que deve ser avaliada a componente da habitação?

Em primeiro lugar, é preciso destacar que esta decisão de alocar tantas verbas à habitação é inédita e veio sublinhar a necessidade de se garantir um direito que está consagrado na Constituição e que, quase 50 anos depois da democracia, está longe de ser garantido. A ideia inicial era, nos 50 anos da revolução, poder garantir uma habitação digna para todos. Entretanto, muitas coisas surgiram e esse desígnio não será integralmente atingido. Mas ainda assim houve uma visão de considerar prioritário este objetivo e torná-lo uma ambição nacional. A sua concretização passa pelo planeamento ao nível local. Portanto, pela primeira vez, todas as autarquias no país tiveram de avaliar a situação, fazer o seu diagnóstico, identificar as necessidades e candidatar-se a recursos suficientes para avançar.

Dar aos municípios o poder e a responsabilidade de fazer uma Estratégia Local de Habitação (ELH) é a descentralização necessária?

É claro que continuamos muito centrados na decisão de organismos que estão centralizados, como é o IHRU, um organismo a quem eu presto o reconhecimento pelo esforço que faz, mas que ainda assim também está muito desprovido de recursos. Portanto, muitas vezes os outros timings que seriam desejáveis para nós acelerarmos a execução não são compatíveis com a capacidade de resposta que o IHRU tem.

É uma inevitabilidade passar pelo crivo do IHRU?

Esta descentralização fica prejudicada porque nos momentos-chave continua a haver entidades centrais onde se faz a rotação de todo o processo. É uma descentralização parcial, não é total. É uma etapa. Estamos a seguir etapas, mas ainda há caminho para fazer. Neste momento, temos dificuldades novas. Tivemos a pandemia que nos impossibilitou de desencadear parte dos processos. Agora temos os impactos da inflação e dos custos no mercado, concursos desertos, falta de capacidade das empresas de construção.

Quem acha que vai conseguir aceder a este financiamento de 100%?

As grandes câmaras têm mais capacidade, mas também é onde está o grosso dos problemas. Se as áreas metropolitanas são as que têm mais robustez técnica das equipas para conseguir executar, e é lá que há mais problemas, será algo positivo para todos.

O que é que pode ser feito para garantir uma distribuição mais equitativa deste financiamento na área da habitação?

As oportunidades são iguais para todos. Não há nenhuma discriminação. Um dos fatores que geram coesão é este acesso universal para todos os municípios. Admito que em algumas autarquias seja difícil, mas é importante começar a entrar na escala das NUTS III, e das Comunidades Intermunicipais. Temos de nos habituar cada vez mais, nesta perspetiva de garantir a coesão, que o nível de intervenção não seja só a nível municipal.

Que dificuldades na execução do 1.º Direito antevê?

Não vamos conseguir chegar aos 26.000 fogos. Um acordo de colaboração assinado com o IHRU a dizer que se vai fazer não sei quantos fogos por X, seguramente vai ser por X+Y. Ou se diminuem o número de fogos ou o orçamento derrapa. Desejemos, sobretudo, que se consigam executar. Os prazos não podem derrapar, estão fixados. Temos de ser capazes de ter uma intervenção ao nível supramunicipal e uma estratégia partilhada porque estes recursos dificilmente se repetirão. Temos o 2030 pela frente, mas temos de ser capazes de executar o PRR, e a habitação é fundamental. Era uma pena chegar a 2026 e ter perdido uma oportunidade única para o país.

 

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Testemunhos de autarcas

De Porto a Lisboa, passando por Alijó e Évora, o PRR é uma maratona de obstáculos. O PÚBLICO fez perguntas a quatro autarquias — Alijó, Évora, Lisboa, Porto. Todas encontraram complexidade no instrumento e dificuldades no mercado.

Em Fevereiro de 2021, quando o Governo anunciou a possibilidade de financiar integralmente as soluções de carência habitacional de 26 mil agregados, foi dado um verdadeiro tiro de partida para uma corrida aos 1211 milhões de euros que poderiam ser financiados pelo PRR. Nessa altura, já havia Estratégias Locais de Habitação (ELH) entregues, acordos de colaboração com o IHRU assinados, pedidos de financiamento submetidos. Municípios que já tinham entregado candidaturas no âmbito do 1.º Direito, retiraram-nas para as candidatar ao PRR. Mas em alguns casos — como no Porto — tiveram de as retirar de novo, porque as regras do PRR são muito exigentes.

O PÚBLICO questionou quatro autarquias — Alijó, Évora, Lisboa, Porto — que, embora apresentem diversidade territorial, têm em comum o facto de estarem entre os primeiros municípios a ver as suas estratégias aprovadas. As respostas são unânimes ao encontrarem muita complexidade no instrumento e muitas dificuldades nas condições de mercado para executar as obras. Filipa Roseta, vereadora da Câmara de Lisboa, defende que a política de habitação tem de passar a ser pensada como um Sistema Nacional, em que públicos, privados e sector social e cooperativo concorram para a solução dos problemas. No seu entendimento, os problemas estruturais não se resolvem com um programa de obras públicas e recorda que o financiamento do PRR será sempre muito reduzido, qualquer que seja o ângulo de análise. O vereador da Câmara do Porto Pedro Baganha reforça esta opinião. Estão ambos nos corpos dirigentes da Associação Portuguesa de Habitação Municipal.

Lisboa quer 262 milhões, já conseguiu 32 milhões

O município de Lisboa identificou 2.867 agregados em carência habitacional no levantamento do IHRU de 2018. Posteriormente, desenvolveu uma ELH com uma equipa interna do município e assinou um Acordo de Colaboração com o IHRU a 12 de Julho de 2019, abrangendo 4.479 agregados sinalizados. De acordo com a vereadora da Habitação Filipa Roseta, o município espera conseguir até ao final do primeiro semestre de 2026 reabilitar ou construir um total de 3.628 casas com um investimento direto da Câmara Municipal de Lisboa (CML) e com 262 milhões via Orçamento do Estado (OE) e PRR. Para já, a CML já contratualizou com o Estado o financiamento de 830 casas (no âmbito do 1.º Direito), estando em fase de análise de candidaturas mais 575 casas. De acordo com a autarca, a Câmara de Lisboa tem 501 famílias com o seu problema habitacional resolvido, e mantém em curso e em finalização diversas empreitadas. Relativamente ao financiamento já recebido por parte do IHRU, são 32,4 milhões de euros alocados às componentes da reabilitação e construção nova. Estes números são consequência dos robustos recursos técnicos que a autarquia possui, mas também dos vários voltefaces que o processo já teve. De acordo com a Câmara de Lisboa, houve uma diminuição de 1.211 fogos por impossibilidade de realização através do PRR, por causa das exigentes regras de eficiência energética, e por não financiar, por exemplo, áreas comuns dos empreendimentos.

Em números redondos, a autarquia pretendia reabilitar já cerca de 3.000 fogos, atualmente geridos pela Gebalis, num investimento de 103 milhões de euros. Destes, a estimativa é que o PRR possa financiar 98 milhões.

Os restantes fogos seriam para a construção de empreendimentos novos, em Entrecampos e Marvila, mas o atual estado do sector não ajuda. “O valor da construção é um risco real. Lançámos a segunda fase do empreendimento de Entrecampos com um preço-base de 1.170 euros/m2, em Setembro de 2021. Já tínhamos um construtor escolhido, mas quando foi para fazer a consignação, ele não assinou o contrato. Tivemos de passar para um valor mais alto. Agora lançámos novo concurso, em Maio, e já está nos 1.306 euros/m2 euros. Vamos ver o resultado”, diz Filipa Roseta.

A vereadora refere que a articulação com o IHRU tem sido permanente, e na sua opinião este organismo procura resolver os problemas. “Mas o processo exige muita burocracia, muita contabilidade, muita medição. Há muita exigência, o que na CML não será tão grave como noutros municípios porque tem uma grande equipa técnica”, termina.

Alijó recebeu apoio, mas não conseguiu arrancar

O município de Alijó identificou cinco agregados em carência habitacional no Levantamento do IHRU de 2018. Recebeu entretanto apoio financeiro, no âmbito do 1.º Direito, para contratar uma equipa externa para desenvolver a ELH, tendo assinado um Acordo de Colaboração com o IHRU a 6 de Janeiro de 2021 que abrangia 168 dos 206 agregados sinalizados. Identificou casos de insalubridade (172), inadequação (14), sobrelotação (oito), precariedade (cinco) e outros diversos em menos número. A estratégia assenta na sua maioria na reabilitação do parque habitacional municipal (146) e prevê ainda a aquisição e reabilitação de fogos já existentes.

A vereadora da Habitação Mafalda Mendes esclarece que até agora ainda não foi possível lançar nenhum projeto. “Será em breve lançado um concurso público para a reabilitação de três bairros sociais”. Também ainda não houve qualquer apoio financeiro — só para a elaboração da estratégia, que é anterior ao PRR. “O IHRU definiu um ponto focal que ajuda a esclarecer as questões do município. Contudo, ainda existem algumas situações em que as orientações não são claras, devido à complexidade da lei”, esclarece. As estimativas de custos da ELH de Alijó foram feitas em 2019 e, recorda a vereadora, “neste momento os valores são muito superiores”, referindo ainda “a dificuldade das empresas de construção não concorrerem às obras”. “Pelo que percebemos, a reabilitação dos fogos não é algo apetecível para os empreiteiros”, afirma. A responsável refere-se ao processo de candidatura como “muito complexo e burocrático”.

Porto já entregou casas, mas falta reembolso

O município do Porto identificou 2.094 agregados em carência habitacional no Levantamento do IHRU de 2018. Desenvolveu com uma equipa externa uma ELH e o primeiro Acordo de Colaboração foi celebrado com o IHRU a 16 de Dezembro de 2020, abrangia 1740 dos quase três agregados sinalizados na estratégia. Este acordo foi assinado com a Domus Social, a empresa pública de habitação social que trata do parque público de habitação e prevê um financiamento de 54 milhões de euros. Mas o município do Porto tem também a Porto Vivo SRU, que tem a incumbência de promover a habitação acessível, e que assinou com o IHRU um acordo de financiamento de 34 milhões de euros. A Domus Social fez uma primeira candidatura em Dezembro de 2020, ao 1.º Direito. Essa candidatura acabou por ser substituída, a pedido do IRHU, por uma candidatura ao PRR. “O que parecia uma boa medida, porque o 1.º Direito financia 50% das obras e o PRR 100%”, recorda o vereador. A Domus Social usa grande parte deste financiamento para pagar a reabilitação de fogos do parque habitacional da câmara municipal, quase todos em edifícios onde as obras no exterior já tinham sido feitas.

“O PRR obriga a que haja um aumento da eficiência energética de fogos. Quando se faz uma intervenção nas fachadas, é fácil de conseguir, quando é no interior dos imóveis é virtualmente impossível. Neste momento, estamos numa circunstância de que dos 50 milhões de euros, o município só conseguiu recuperar menos de 800 mil euros. Vamos dar um passo atrás, e candidatar grande parte destas reabilitações da Domus Social não ao PRR, mas ao 1.º Direito. É melhor 50% do que nada”, relata Pedro Baganha. No OE não está a dotação necessária para que o município seja reembolsado — tal só deve acontecer no próximo ano. E o que não é decisivo nas contas da Câmara do Porto pode ser crítico noutras autarquias. No que diz respeito ao acordo da colaboração do Porto Vivo, está a correr melhor. Foi o último a ser assinado, mas a primeira candidatura entrou recentemente — para o projeto das ilhas da Lomba. É um investimento de 8,5 milhões que deve ser financiado a 100%.

Com um parque público municipal expressivo, a prioridade assumida do município do Porto é avançar num programa de habitação acessível para o qual não há financiamento a fundo perdido no PRR mas sim uma linha de crédito de quase 150 milhões de euros. “Temos neste momento 80 fogos na calha para serem contratualizados com esta modalidade”, informa o vereador, adiantando que só a Câmara do Porto gastaria 70% da linha criada pelo Governo.

Em Évora, pequenas reabilitações

No levantamento de 2018, o município de Évora identificou 153 agregados em carência habitacional. Quando uma equipa interna do município elaborou a ELH sinalizou 1.342 (811 casos de insalubridade e 531 de precariedade). No Acordo de Colaboração assinado com o IHRU em Julho de 2020, celebrou financiamento para 467 situações. Desde então, diz Susana Mourão, coordenadora da unidade de habitação e reabilitação urbana, já submeteu três candidaturas para a reabilitação de 62 habitações, das quais 52 já estão concluídas. Foram pequenas intervenções de reabilitação, uma parte em casas devolutas, e todas para atribuir em arrendamento apoiado. O município pretende agora avançar na construção de 200 fogos, está a ultimar a fase de projeto. Para já, a autarquia ainda não sentiu dificuldades em cumprir o orçamento previsto. A ELH de Évora prevê muitas soluções a serem garantidas por beneficiários diretos (575) e por cooperativas/associações de moradores (230). O município apoia diretamente ou colocando a empresa municipal HabÉvora a assumir as candidaturas quando se trata de arrendamentos apoiados.