Sobre a alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial - RJIGT

O latifúndio

José Carlos Guinote, Público

O Governo aprovou, no passado dia 28 de Novembro, “um decreto-lei que promove uma alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), permitindo o aumento da oferta de solos destinados à construção de habitação”.

Este decreto-lei, disponível apenas para análise dos parceiros institucionais, foi sendo sucessivamente anunciado desde que o Governo abandonou a opção inicial de alterar a Lei de Solos, tendo então concluído que lhe bastaria alterar o RJIGT para conseguir os mesmos objectivos.

E que objectivos são esses? Segundo o que se pode ler no comunicado do Governo, “pretende-se garantir um regime especial de reclassificação para solo urbano, cuja área maioritária deve obrigatoriamente ser afecta a habitação pública ou a habitação de valor moderado”. Não parece uma grande explicação para uma opção política que concretiza uma alteração radical ao actual Sistema de Gestão Territorial (SGT) e que, dessa forma, atinge a política pública de ordenamento do território e do urbanismo que nele se apoia. Talvez por isso se justifique olharmos com atenção para a audição do ministro adjunto e da Coesão Territorial no passado dia 7 de Novembro na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública da Assembleia da República no âmbito da discussão sobre o Orçamento Geral de Estado. Nessa audição, a dado passo, o ministro referiu o seguinte: “Nós estamos a mudar a lei dos IGT para dar mais capacidade às autarquias locais para elas e as assembleias municipais, e só elas, afectarem terrenos, que hoje não estão disponíveis, à construção de habitação, obrigando a um número mínimo de habitação a preços controlados ou renda acessível ou a preço acessível e isso vai dispensar intervenções de revisão dos PDM, intervenções das CCDR e de quaisquer outros serviços públicos.”

Para de seguida concluir, categórico: “É obrigatório disponibilizar mais terrenos para construção, para baixar o preço da habitação. Considero esta uma das medidas mais estruturantes para baixar o preço dos terrenos para habitação.”

Nenhum dos senhores deputados presentes se lembrou de colocar ao ministro algumas perguntas, mais ou menos óbvias, a saber:
1.º Quais são os municípios em que se esgotaram os terrenos destinados à construção de habitação e nos quais existe falta de habitação para responder quer às necessidades de realojamento das famílias, em situação de indignidade habitacional, quer à procura de arrendamento acessível?
2.º Nos municípios sujeitos a maior pressão urbanística e/ou com maior aumento dos preços da habitação, quais são os que já esgotaram os solos disponíveis para habitação situados nos seus perímetros urbanos?
3.º Como consequência da aplicação da Nova Lei de Solos em 2014, protelada através de sucessivas alterações legislativas, quantos milhares de hectares de solos urbanizáveis passaram a rústicos e em que municípios? A sua reclassificação como urbanos é, ou não, uma resposta possível a uma hipotética necessidade de solos urbanos, recorrendo ao art. 72.º do RGIT?
4.º Que experiência internacional valida a tese de que a liberalização do processo de classificação do uso do solo concorre para uma efectiva diminuição do preço do so urbano e do preço final da habitação?

Como já aqui referi, a propósito da intenção liberalizadora presente no Mais Habitação, em Portugal não há falta de terrenos para a construção de habitação que justifique uma decisão política desta natureza. Só na parte sul da Área Metropolitana Lisboa (AML), dentro dos actuais limites dos perímetros urbanos, podemos alojar mais 400 mil habitantes. E na parte norte? Qual é a taxa de execução dos espaços urbanizados e urbanizáveis previstos nos PDM em cada um dos oito municípios que a integram? Quantas centenas de milhares de habitantes é ainda possível alojar, na situação actual, dentro dos seus perímetros urbanos?

Se analisarmos as Estratégias Locais de Habitação aprovadas em todos os concelhos da AML, verificamos que foram identificadas 37.381 famílias a viver em situação indigna em 18 concelhos. Dessas, 22.999 famílias estão abrangidas pelos acordos de colaboração celebrados entre os municípios e o IHRU. Na AML há terrenos urbanos suficientes para alojar dignamente todas as famílias necessitadas e para construir todas as habitações necessárias para regular o mercado de arrendamento. Falta apenas vontade política. Não faltam sequer recursos financeiros, como já mostrámos noutras alturas.

Por que razão, em muitos dos municípios nos quais se regista um aumento continuado dos preços da habitação, o investimento público em habitação foi nulo nas últimas duas décadas, limitando-se as autarquias, sobretudo as detentoras de um importante património fundiário, ao negócio da venda de terrenos para os sectores do imobiliário com maior poder aquisitivo? Actuando numa lógica que concorre para a manutenção dos preços especulativos e que ignora as respostas necessárias – e possíveis, caso existisse vontade política – às necessidades das pessoas, das famílias e das empresas.

A actual estratégia de neutralização da Lei de Solos favorece os interesses do sistema financeiro e dos especuladores, atraindo o capital estrangeiro, seja de que origem for, que aposta os seus recursos nos investimentos associados ao processo de urbanização e na rápida captura das mais-valias urbanísticas. Neutralização porque a Lei de Solos determinava, por razões óbvias, a contenção da expansão urbana e impunha que terrenos urbanizáveis ainda não objecto de qualquer desenvolvimento urbanístico fossem reclassificados como rústicos. O que agora se propõe anula e inverte completamente esse efeito e torna todo o território do país potencialmente urbanizável. Neutralização porque torna inaplicável o princípio da afectação social das mais-valias.

O álibi das necessidades habitacionais é apenas isso, um álibi. Quantos milhares de fogos irão ser construídos com esta nova lei que antes não poderiam ser e onde? O Governo não sabe. Isso será uma resposta a dar pelas autarquias e pelas assembleias municipais, eis o segundo álibi. Como se as autarquias, com o seu actual grau de despolitização e de menorização das assembleias municipais, transformadas em burocráticas câmaras rectificativas das decisões dos executivos municipais, fosse a instância adequada para tratar estas questões.

Na verdade, ao concretizar esta alteração o Governo devolve ao urbanismo o seu imenso poder corruptor, praticado com esplendor antes da crise do imobiliário, com as consequências de todos conhecidas. Olha para o território como um latifúndio e entrega aos novos latifundiários da renda imobiliária uma forte motivação para corromperem aqueles que, ao nível municipal, irão tomar as necessárias decisões.

Vamos ter a segunda edição dos “Donos disto Tudo” e da sua próspera corte de vassalos, desta vez com uma relevante “expressão territorial”. Como país somos incapazes de criar riqueza para todos, como referiu João Cravinho a propósito da localização do novo aeroporto, ou sequer bem-estar para a maior parte. Mas criar ricos e muito ricos é mesmo a nossa especialidade. Quase sempre usando o território e a omissão política como matéria-prima. Triste fado.