Sobre a alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial - RJIGT
Mais habitação? Só mais especulação!
A alteração à lei dos solos preconizada pelo Governo, e promulgada na semana passada pelo Presidente da República, vem escancarar as portas à especulação imobiliária. À boleia das boas intenções, como “desburocratizar” os processos urbanísticos e construir habitação a preços comportáveis para o nosso nível de vida, vai ser possível construir um prédio para habitação em qualquer lado, no meio do campo ou da floresta, à revelia de qualquer critério urbanístico.
O problema da falta de habitação não se resolve construindo mais habitações onde os terrenos são mais baratos, porque não são solo urbano e nunca deveriam ser urbanizados, tendo em conta as suas características intrínsecas e a ausência de infraestruturas urbanas. A promulgação deste novo e “milagroso” decreto-lei, que permite alterar a classificação de solo rústico para solo urbano por simples decisão das assembleias municipais, é um retrocesso imenso, num processo que se vinha concretizando “a pulso”, no sentido de ordenar e valorizar o território e construir
habitação condigna devidamente enquadrada.
Passo a explicar: o território é um bem que, independentemente da propriedade/posse, é de todos. O território é também um recurso com importância para a economia e para o ambiente, mas só é um bem e um recurso se respeitarmos as suas qualidades intrínsecas e se o ordenarmos e qualificarmos de acordo com o fim a que se destina. Um terreno bom para construir habitação não é o mesmo que um terreno bom para a produção de alimentos ou para sequestrar carbono e produzir madeira. Por isso, entregar aos privados, à revelia de qualquer política de ordenamento, a concretização de um direito que incumbe ao Estado, permitindo a construção de habitação a preços no qual o lucro
faz parte da equação, em terrenos que só são baratos para os especuladores, porque não se contabilizam os custos urbanísticos e ambientais, é um logro.
A Habitação, a habitação pública e habitação social (entendida como a que garante a resposta transversal ao direito constitucional), não pode continuar a estar dissociada do ordenamento do território, da envolvente e do ambiente de qualidade. A Habitação tem estado fora das políticas territoriais municipais, por razões várias e por isso a habitação social vai aparecendo onde há terrenos e não onde é necessária e onde o Plano Diretor Municipal considera mais correta e harmoniosa a sua localização. A habitação para todos (neste todos está um universo cada vez mais amplo, porque os nossos filhos licenciados que fazem parte deste todos, são empurrados para as periferias desqualificadas ou para casa dos pais) é construída em qualquer lado, ocupando solos com qualidade para produzir o que comemos, essenciais para garantir a biodiversidade e as funções
ecológicas necessárias ao equilíbrio do ecossistema e nunca nas cidades onde nascemos, onde estão os serviços de que precisamos: os transportes públicos, as escolas, os campos desportivos, as atividades culturais, o comércio de proximidade e os amigos...
Mas há soluções. Há edifícios habitacionais devolutos nas cidades, em solo urbano, com infraestruturas e com equipamentos e serviços de proximidade. Há áreas nas cidades ocupadas exclusivamente com habitação para turistas. Há terrenos desocupados nas cidades, que podem ser construídos com habitação, com serviços ou simplesmente devolvidos ao benefício público, concretizando ilhas verdes e espaços permeáveis,
necessários à vida social e combate às alterações climáticas.
Por isso os municípios devem ter mais meios, não para alterar os planos diretores municipais, mas para os concretizarem, para adquirirem os terrenos necessários e corretamente localizados para a construção de habitação com custos controlados na melhor “cidade”.
O direito à cidade e o direito à habitação não podem ser dissociados. É nosso dever exigir a concretização desses direitos.
Voltando ao início: o problema desta lei não está em quem aprova a alteração de solo rústico para solo urbano, mas no facto de ser banalizada essa transformação.
Nós, cidadãos, temos de exigir aos municípios e ao Governo a concretização do direito à habitação com qualidade e à cidade infraestruturada e equipada, sem nos deixarmos iludir com promessas de facilidades processuais, que apenas vão encher os bolsos de alguns e prejudicar a todos.