Sobre a alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial - RJIGT

A grande entorse

Helena Roseta, Público

1. A distinção entre solo rústico e solo urbano é um tema essencial do ordenamento do território. É através do planeamento territorial que se estabelece essa classificação. É sabido que a requalificação do solo rústico como solo urbano se traduz sistematicamente numa multiplicação de valor com grande impacto no mercado fundiário e no preço da habitação. Os diplomas estruturantes nesta matéria são a lei de solos e o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), cujas versões atuais descendem da Lei de solos de 2014 e do RJIGT de 2015, ambos aprovados pelo Governo de Passos Coelho após intenso debate público. (*)

2. A pressão imobiliária e a crise habitacional levaram os últimos governos a procurar disponibilizar mais solo barato, facilitando a conversão de terreno rústico em terreno urbano. O chamado “Simplex Urbanístico”, do último governo de António Costa, já tinha alterado a lei de solos e o regime jurídico dos planos territoriais. Permitia, com algumas salvaguardas, requalificar solo rústico como urbano através de simples deliberação pelos órgãos municipais, sem ser preciso fazer ou alterar planos territoriais. Para construir habitação em solo público, dispensava-se o parecer da comissão de coordenação e desenvolvimento regional e até a fundamentação técnica, caso esta já estivesse contida na Estratégia Local de Habitação ou na Carta Municipal de Habitação aprovadas.

3. O Decreto-lei 117/2024 publicado em 30 de dezembro volta a alterar o regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial. Não se trata de uma pequena alteração mas de uma "entorse significativa", como reconheceu o Presidente da República ao promulgar o diploma a seguir ao natal. Passa a permitir-se construir habitação, sem alterar planos em vigor e através da deliberação dos órgãos municipais, mas agora também em solo rústico privado. O diploma mantém algumas das restrições resultantes da Reserva Agrícola e da Reserva Ecológica nacionais e obriga a que pelo menos 70% da área construída seja para habitação dita “de valor moderado”, podendo o restante destinar-se ao mercado livre.

4. E o que é um “valor moderado” para o preço da habitação? Pasme-se: é um valor que não exceda 125% da mediana de preço de venda no concelho, nem 225% da mediana nacional, segundo os últimos dados do INE. A fórmula permite assim, sistematicamente, valores de venda acima dos valores atualizados do mercado. Como se estes não fossem já suficientemente proibitivos para a maioria dos portugueses que procuram casa.

5. O impacto previsível do novo decreto-lei torna-se mais evidente se recordarmos um parágrafo lapidar do preâmbulo do regime jurídico de 2015, agora subvertido:

"Um modelo coerente de ordenamento do território deve assegurar a coesão territorial e a correta classificação do solo, invertendo-se a tendência, predominante nas últimas décadas, de transformação excessiva e arbitrária do solo rural em solo urbano. Com efeito, pretende-se contrariar a especulação urbanística, o crescimento excessivo dos perímetros urbanos e o aumento incontrolado dos preços do imobiliário, designadamente através da alteração do estatuto jurídico do solo. Institui-se um novo sistema de classificação do solo, em solo urbano e solo rústico, que opta por uma lógica de efetiva e adequada afetação do solo urbano ao solo parcial ou totalmente urbanizado ou edificado, eliminando-se a categoria operativa de solo urbanizável."

6. Tudo isto se passou entre o Natal e o Ano Novo, discretamente, para doer menos. O novo diploma vai entrar em vigor sem escrutínio cidadão, sem debate público e sem passar pelo Parlamento. Cabe aos deputados usar o seu poder constitucional de fiscalização do governo. É altura de o fazerem. Têm trinta dias para que um mínimo de dez deputados requeira a apreciação parlamentar do diploma, que pode ser confirmado, alterado ou rejeitado pelo parlamento. E cabe-nos a nós, cidadãos, alertar a opinião pública para esta grande “entorse” ao nosso sistema de planeamento, que abre intempestivamente novas oportunidades para a desordem territorial e para o agravamento do preço da habitação.

 

 

 

 

(*) No portal cidadão O Contador estão disponíveis os mapas comparativos com as principais alterações à lei de solos de 2014 e ao RJIGT de 2015 até ao decreto-lei 117/2024 de 30 de dezembro, inclusive.