Nova lei dos solos: acelerar o PRR na direcção da parede
Como estou a ficar velho, e o colesterol não perdoa, comecei a correr. E como Lisboa é uma cidade sem parques nem espaços verdes de jeito, comecei a correr no meio das ruas. Qualquer pessoa que se dedique a semelhante exercício vai deparar-se com um estranho mistério: não dá para perceber como é que há tantas queixas de falta de habitação com centenas de prédios abandonados e de espaços desocupados na cidade. Há hortas encaixadas no meio de torres. Há habitações devolutas de séculos passados ao lado de estradas modernas. Há edifícios-fantasmas com boas condições de habitabilidade totalmente vazios. Há espaço, muito espaço, muito mal aproveitado. E há um nível de desordem urbanística difícil de compreender numa capital que se quer moderna.
Ninguém vê tal coisa no centro de Nova Iorque, de Londres ou de Paris. Pergunto: são os fundos imobiliários que tomam conta desse património para depois não fazerem nada com ele? São as famílias que não se entendem com o destino a dar a terrenos ou prédios que receberam em herança? É o Estado que acumula edifícios sem critério? Seja qual for a explicação, isto é certo: a prioridade número um do Governo, em termos de política de habitação, deveria ser a intervenção musculada nestas situações, seja através de penalizações fiscais, de multas altíssimas para quem tem edifícios sem uso em locais de escassez habitacional, ou até de expropriações, em nome do interesse público.
Infelizmente, o Governo preferiu a via mais fácil: sem passar pelo Parlamento e sem qualquer debate público, aprovou no final do ano um decreto-lei que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), permitindo aos municípios a reclassificação de terrenos rústicos em urbanos, com o argumento de que é necessário promover a construção de habitação. O Presidente da República classificou o diploma como "um entorse significativo (sic) em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território", mas, espantosamente, aprovou-o na mesma, com o argumento mais coçado do último ano: a "urgência no uso dos fundos europeus". Para esgotar o dinheiro de Bruxelas, todas as entorses são permitidas. E daqui a uns aninhos lá vamos ter o Ministério Público a acumular processos, e o país a lamentar uma nova onda de trafulhices e de corrupção.
Querem apostar? A obsessão com a execução do PRR já nos deixou sem o visto prévio do Tribunal de Contas em projectos de dezenas de milhões de euros. E agora temos uma nova lei dos solos que é o sonho húmido dos empresários da construção civil com ligações íntimas às câmaras. Há um ponto específico da nova lei que, por mais voltas que dê à cabeça, não percebo como pode ser compatibilizado com o desejo de construir habitação a preços acessíveis. No ponto 8 do artigo 72.ºB, os legisladores definem o conceito de "habitação de valor moderado", permitindo que o seu preço possa ascender até "125% do valor da mediana de preço de venda por metro quadrado de habitação para o concelho da localização do imóvel". Ou seja, 25% acima (!) daquilo que são os valores actuais das casas em Portugal. Mais: esse valor só tem de ser respeitado em 70% das novas habitações.
"Moderado"? A sério? Deputados do Bloco, PCP, Livre e PAN já pediram a apreciação parlamentar do decreto-lei, e em boa hora o fizeram. Se a sua aprovação com "entorses" já é altamente duvidosa, a sua aprovação sem qualquer discussão pública seria um escândalo. Exigem-se explicações.