Sobre a alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial - RJIGT

Análise crítica à 7.ª alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial

Tiago Forjaz Trigueiros

O Governo decretou a sétima alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, adiante designado RJIGT (Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio, na sua redação atual), através da publicação do Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, que promove a possibilidade de, sem a devida fundamentação ou estudos de suporte, se proceder à reclassificação do solo rústico em solo urbano, por mera declaração, o que se constitui como uma negação de todo o sistema de gestão territorial português, que se suporta nos fins e princípios (Artigo 2.º e 3.º) da Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo, adiante designada LBPPSOTU (Lei n.º 31/2014, de 30 de maio).

Considerando:

  1. | Que a dificuldade de “acesso à habitação” é essencialmente financeira e motivada por um sistema complexo de fatores, para os quais contribuem em grande medida (i) os custos de construção e (ii) a expectativa de rendas associadas à aquisição para investimento, sem que o valor do solo tenha um peso expressivo.
  2. | Que não há qualquer evidência de (i) falta de oferta habitacional (723.215 fogos vagos em PT em 2021 – fonte INE), de (ii) falta de solos aptos à edificação em solo urbano, ou (iii) de inexistência de prédios devolutos para reabilitar, que impeçam a adoção de políticas direcionadas para um aumento da oferta habitacional dentro das áreas urbanas, onde já foi feito um investimento em infraestruturas, equipamentos, espaço público e transportes.
  3. | Que o solo é um recurso natural escasso essencial ao equilíbrio das funções agrícolas, florestais, de regulação e culturais, que não deve ser sacrificado sem a adequada fundamentação e ponderação, o que é abandonado com a revogação do n.º3 do artigo 72.º do RJIGT, que consagra o dever de fundamentação da reclassificação do solo na (i) demonstração de indisponibilidade de alternativas em solo urbano, (ii) na demonstração do impacto da carga urbanística no sistema de infraestruturas existentes (tal como é exigido a qualquer cidadão numa operação urbanística), e (iii) na demonstração da viabilidade económico-financeira da Note-se que a revogação do n.º3 do artigo 72.º passou a abranger todos os procedimentos de reclassificação do solo, ou seja, incluindo através da elaboração de plano de pormenor, que deixa de ter o dever de fundamentação e necessidade (face à indisponibilidade de áreas expectantes em solo urbano).
  4. | Que o sistema de gestão territorial português apresenta, há vários anos, sinais de maturidade, (dada a cobertura nacional, desde os anos 90, de planos diretores municipais), e está obrigado aos princípios essenciais de responsabilidade, transparência e estabilidade, e que a dinâmica dos planos resulta da sua própria monitorização e avaliação, dando azo, com uma base fundamentada e tangível (relatório do estado do ordenamento do território), a eventuais procedimentos de alteração ou revisão. Pressuposto que é afastado nesta alteração ao RJIGT.
  5. | Tal como admitido no preâmbulo do Decreto-Lei º 117/2024, de 30 de dezembro, que este diploma fere o princípio da segurança e da previsibilidade do ordenamento jurídico, tornando menos claro o que se quer tangível (matérias do direito em ordenamento do território).
  6. | Que, segundo a Lei de Bases da Habitação – LBH, a política nacional de habitação implica a articulação com a política pública de solos, de ordenamento do território e do urbanismo e com a política de ambiente, no quadro das respetivas leis de bases (alínea h) do n.º5 do artigo 16.ºda LBH) e que, a nível municipal, a Carta Municipal da Habitação inclui um diagnóstico, planeamento e ordenamento prospetivo de carências habitacionais, optando sempre pelas disponibilidades do solo urbanizado e pela reabilitação do edificado (artigo 22.º da LBH).
  7. | Que o território, e os sistemas das cidades, especialmente nas áreas metropolitanas e nos zonas do país mais atrativas, não terminam nos seus limites administrativos, sendo que a decisão de reforçar a oferta habitacional em determinado concelho, para além do já previsto nos planos em vigor, tem necessariamente impactos nos concelhos confinantes e nos sistemas intermunicipais, com consequências que só podem ser antecipadas e estudadas ao nível regional (através dos programas regionais de ordenamento do território ou de documentos estratégicos específicos a essa escala), sob pena de agravar a qualidade dos serviços (infraestruturas e transportes) e a qualidade de vida das populações.
  8. | Que este diploma (Decreto-Lei º 117/2024, de 30 de dezembro) contraria manifestamente a LBPPSOTU, destacando-se a violação de vários fins da política pública de solos, bem como de princípios gerais ao quais as políticas públicas e as atuações administrativas em matéria de solos estão subordinadas (artigo 2.º da LBPPSOTU). Neste âmbito salienta-se o facto de: (i) não garantir o desenvolvimento sustentável (principalmente ao revogar o dever de fundamentação na demonstração de indisponibilidade de alternativas em solo urbano – i.e. n.º3 do artigo 72.º do RJIGT), (ii) não garantir o reforço da coesão, (iii) aumentar a exposição aos efeitos decorrentes de fenómenos climáticos extremos, (iv) não racionalizar os aglomerados urbanos, (v) não defender o património natural, cultural e paisagístico, (vi) não assegurar o aproveitamento racional e eficiente do solo, (vii) prejudicar as potencialidades das áreas agrícolas, florestais e silvo-pastoris (principalmente ao aumentar o valor do solo pelo caráter especulativo da norma adotada), (viii) não promover a regeneração do território e a requalificação de áreas degradadas, (ix) incumprir o princípio da solidariedade intergeracional e de um equilibrado desenvolvimento socioeconómico (pelo dispersão irracional e não fundamentada de infraestruturas), (x) violar o princípio da responsabilidade (designadamente por não proceder à avaliação ambiental das opções), (xi) incumprir o princípio da economia e eficiência (pelo não aproveitamento dos recursos existentes em solo urbano), (xii) desrespeitar o princípio da compatibilização de diversas políticas com incidência territorial, (xiii) violar o princípio da equidade, (xiv) não garantir a concertação e a contratualização de interesses públicos, (xv) ferir gravemente o princípio da segurança jurídica e proteção da confiança, (xvi) incumprir o princípio da prevenção e da precaução (designadamente ao ignorar sistemas da REN sem a devida avaliação), (xvii) incumprir o princípio da transversalidade e da integração de políticas ambientais.
  9. | A violação de todos estes fins e princípios da LBPPSOTU é fácil de determinar, dada a subversão do sistema de planeamento que esta alteração ao RJIGT comporta, dado que assenta num princípio em que a decisão e a execução estão a montante da integração nos planos territoriais (que pressupõe o cumprimento destes fins e princípios). Por este facto, compreende também uma violação dos deveres do Estado (artigo 8.º da LBPPSOTU), ao ignorar o dever de planear o uso do solo, e consequentemente da Constituição da República Portuguesa (artigos 65.º e 66.º da CRP).
  10. | Que este diploma (Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro) contraria o disposto na Lei de Bases da Habitação - LBH, cujos princípios (artigo 3.º da LBH) e determinações apontam sempre para a (i) conformação com os planos territoriais, (ii) para a sustentabilidade (social, económica e ambiental) e racionalidade (promovendo a melhor utilização e reutilização dos recursos disponíveis), (iii) para a garantia de serviços públicos essenciais, transportes e equipamentos (disponíveis no solo urbano existente, sem necessidade de aumentar os sistemas e, consequentemente, os custos de manutenção), apontando como vias para a concretização desta política a otimização do solo urbano e a reabilitação do edificado. Neste domínio, é a Carta Municipal da Habitação que assume especial relevo, e não a Estratégia Local de Habitação ou mesmo a bolsa de habitação, tal como proposto na alínea e) do n.º1 do artigo 72.ºB do Decreto- Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro.
  11. | Que este diploma (Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro) contraria o Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território – PNPOT, e os seus princípios territoriais, ao promover a urbanização fragmentada e a edificação dispersa, bem como o consumo, não fundamentado, de um recurso natural – o solo -, o que aponta para um caminho de menor sustentabilidade ambiental e económica.
  12. | Que este diploma (Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro) contraria o dever de proceder à avaliação dos efeitos provocados no ambiente, pelas alterações que promove nos planos territoriais, conforme disposto no Decreto-Lei n.º 232/2007, de 15 de junho, que procedeu à transposição para a ordem jurídica interna as Diretivas n.ºs 2001/42/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de junho, e 2003/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de maio.
  13. | Que este diploma (Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro) conflitua com o Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional – RJREN (Decreto-Lei n.º 166/2008, de 22 de agosto, na redação atual) e com o Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional – RJRAN (Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de março, na redação atual), sem que produza efeitos nos referidos Ou seja, é inútil a reclassificação do solo em REN e RAN quando as consequentes operações urbanísticas, que seguem o regime jurídico da urbanização e edificação (RJUE), têm de se conformar com as servidões e restrições de utilidade pública em vigor (note-se que a alteração ao plano territorial ocorre após a concretização do reparcelamento, das obras de urbanização e das obras de edificação).
  14. | Que este diploma (Decreto-Lei º 117/2024, de 30 de dezembro) prejudica a Estratégia da União Europeia para a Biodiversidade 2030, que procura atingir o princípio “no net land take by 2050”, e contraria a Carta de Leipzig (2020).
  15. | Que este diploma (Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro) promove o aumento da impermeabilização do solo, o que é contraproducente num contexto urgente de mitigação dos riscos associados a fenómenos climáticos extremos (alterações climáticas), como são o risco de cheias ou as ondas de calor, que colocam em risco pessoas e bens, aumentando significativamente os custos, para os quais todos os cidadãos contribuem, para a manutenção das infraestruturas e para a eventual mitigação dos riscos acrescidos pelo aumento, não justificado, das áreas urbanas.
  16. | Que este diploma (Decreto-Lei º 117/2024, de 30 de dezembro) promove uma perigosa e indeterminada inovação, que permite a reclassificação do solo para “alojamentos de trabalhadores agrícolas”, quando tal ocupação já é admitida na classificação de solo rústico, desde que compatíveis com as orientações dos programas regionais (alínea b) do n.º do artigo 16.º do Decreto Regulamentar n.º 15/2015, de 19 de agosto).
  17. | Que este diploma (Decreto-Lei º 117/2024, de 30 de dezembro) propõe que se considere “habitação de valor moderado” aquela em que o preço não exceda o valor da mediana de preço de venda por metro quadrado de habitação para o território municipal ou, se superior, 125% do valor da mediana do concelho da localização do imóvel, até ao máximo de 225% do valor da mediana nacional, o que ao invés de contribuir para a regulação dos preços, estipula, à partida, uma valorização imediata, e que o âmbito desta norma ultrapassa as matérias que devem ser abordadas no RJIGT.
  18. | Que não são salvaguardadas as segundas transmissões, podendo, no final, as habitações serem comercializadas a valores muito superiores, ou até originar outros usos (incluindo o alojamento local).
  19. | Que a solução adotada, de reclassificação do solo rústico, é onerada pela necessidade de realização de infraestruturas, cuja execução e reforço (das existentes), poderá superar, muito provavelmente, o diferencial do custo na aquisição de terrenos urbanos existentes, ou prédios devolutos ou a necessitar de reabilitação.
  20. | Também, em consequência, que, a médio e longo prazo, o consumo irracional e desnecessário do solo, irá onerar as atuais e futuras gerações, designadamente nos custos da manutenção das infraestruturas, para os quais todos contribuímos com o imposto municipal sobre imóveis (IMI). Lembrando as palavras do ex-Ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia de Portugal, Dr. Jorge Moreira da Silva, “não podemos ter infraestruturas municipais para 40 milhões de portugueses pagas, e mantidas, por 10 milhões de portugueses”.
  21. | Que a natureza especulativa e indeterminada da possível reclassificação do solo rústico em solo urbano tem como consequência a imediata valorização do solo, com graves consequências para as atividades que aí devem ocorrer, nos termos da LBPPSOTU, designadamente as funções agrícolas, florestais, de regulação e culturais, ao torná-los economicamente inacessíveis, por excessiva valorização.
  22. | Que a adoção de soluções expeditas e pouco escrutinadas, que amplificam exponencialmente o valor do solo (designadamente pela sua reclassificação), deviam ser profundamente estudadas e fundamentadas, o que não acontece ao nível das exigências do Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, aumentam a suscetibilidade a fenómenos de tráfego de influências e corrupção, e ao sentimento geral de desigualdade (dos pares não “premiados” com a reclassificação). Note-se que estas decisões podem desenvolver um sentimento de injustiça e descrença nas instituições públicas, agravando o fosso, que não devia existir, entre os cidadãos e os órgãos de soberania.
  23. | Também que a referida desigualdade entre pares (proprietários em solo rústico), na preferência de uns em relação a outros, é neste diploma efetuado à margem de (i) uma avaliação ambiental, de um (ii) relatório do estado de ordenamento do território, ou de (iii) uma carta municipal de habitação. Sendo que a exigência de “compatibilidade” com a estratégia local de habitação, carta municipal de habitação ou bolsa de habitação (alínea e) do n.º1 do artigo º- B do Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro), é distinta do conceito de “previsão” explícita em carta municipal de habitação (CMH), já considerando um desfasamento com a LBH que prevê que esta articulação ocorra unicamente em “solo urbanizado” (alínea a) do n.º4 do artigo 22.º da LBH).
  24. | A opinião fundamentada de inúmeros profissionais, cidadãos e associações, dos quais se destaca a Associação Portuguesa dos Urbanistas (APU), A Associação Portuguesa dos Arquitetos Paisagistas (APAP), as dezasseis organizações que subscrevem o manifesto da Quercus, entre outros, que manifestam a sua profunda preocupação e perplexidade com o proposto no Decreto- Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro.
  25. | Considerando, finalmente, que a promulgação deste diploma pelo Sr. Presidente da República, que o classifica como um “entorse significativo em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território”, tem como objetivo a “urgência no uso dos fundos europeus”, o que é materialmente impossível, dado que as candidaturas estão fechadas e validadas pelo IHRU, e os fogos devem ser entregues até junho de 2026, o que seria temporalmente impossível de concretizar por via da reclassificação do solo agora proposta.

Considera-se que a 7.ª alteração ao RJIGT (Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro) não só se encontra ferida de ilegalidade, como constitui uma subversão aos direitos e garantias dos cidadãos, e aos deveres do Estado, em matéria de ordenamento do território, havendo muitas outras soluções que podem, de forma sustentável e articulada, com os regimes e planos em vigor, otimizar a utilização do solo urbano, com claros benefícios para um aumento da oferta habitacional, e para a sustentabilidade económica, social e ambiental de Portugal.

Neste sentido, o requerimento já apresentado nos termos da alínea c) do artigo 162.º e do artigo 169.º da Constituição da República Portuguesa, para apreciação parlamentar do Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro, devia originar a revogação do referido diploma, para que se dê início a uma reflexão profunda, responsável e participada, dos vários regimes e diplomas que têm implicações no ambiente e ordenamento do território, tal como previsto na Lei das Grandes Opções para 2024-2028.

 

 

Cascais, 05 de janeiro de 2025,

 

 

Tiago Forjaz Trigueiros, Arq.º Urb | OA 10527 | APU 250