Sobre a alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial - RJIGT
Alteração do RJIGT: uma falsa solução para a habitação
A argumentação que tem vindo a ser aduzida pelo Governo em defesa das hipotéticas “virtudes” da alteração ao RJIGT (e não da Lei dos Solos), publicada no passado dia 30 de dezembro (1), é merecedora de alguns comentários relativos à natureza das suas disposições e aos efeitos da sua aplicação ao território. Assim:
- O alegado reforço de transparência no processo de decisão municipal
Tem sido afirmado que o facto de as propostas de reclassificação de solos terem de aprovadas pelas assembleias municipais institui um processo de decisão de transparência reforçada relativamente ao atualmente aplicável aos planos municipais, nomeadamente ao Plano Diretor Municipal (PDM). Ora este é rigorosamente o regime em vigor desde 1990 para a aprovação desses planos e das suas alterações e revisões (DL 69/90), pelo que não se consegue detetar onde se manifestará tal reforço de transparência.
- A “baixa do preço das casas” que irá (?) decorrer do novo regime especial de reclassificação do solo
Afirma-se que “a alteração ao RJIGT tem um único objetivo: aumentar a oferta de terrenos para construir habitação como forma de baixar o preço das casas”. Para tal, é estabelecido um regime especial (e muito expedito) de reclassificação do solo, que será aplicável apenas a iniciativas em que pelo menos 70% da área de construção total se destine a habitação a ser comercializada a preços que não excedam o de um “valor moderado”, que é referenciado aos valores das medianas nacional e concelhia dos valores de venda praticados no mercado.
Nos termos em que foi definido, este “valor moderado” só será inferior à media concelhia dos valores de venda praticados no mercado nos concelhos de Lisboa e Cascais (mas em Lisboa todo o seu solo está já classificado como urbano).
Por sistema, os valores de mercado mais elevados ocorrem nas áreas mais centrais e mais “nobres” do espaço urbano de um dado concelho, diminuindo em direção às áreas urbanas mais periféricas, onde atingem os valores mais baixos; donde, estes últimos serão inferiores aos da mediana concelhia (esta é, por definição, um valor intermédio entre o mais alto e o mais baixo), pelo que, sendo o “valor moderado” generalizadamente superior à mediana concelhia, então os valores de mercado atualmente praticados nas áreas urbanas mais periféricas vão ser também por sistema inferiores ao dito “valor moderado”.
Como os valores de comercialização da habitação a construir nas áreas reclassificadas não irão ser, certamente, superiores aos praticados nas áreas urbanas vizinhas (periferias urbanas), conclui-se que a exigência de não se praticarem preços de venda superiores ao “valor moderado” nas áreas a reclassificar, como condição de tal reclassificação admissível, não constituirá qualquer ónus de diminuição dos proveitos do promotor.
Na realidade, a aplicação deste regime especial não terá qualquer relevância na contenção dos preços de mercado (até porque, se estes subirem, o “valor moderado”, ao estar-lhes indexado, sobe também).
- Algumas incidências territoriais
É apontado que a aplicação deste regime especial de reclassificação do solo garantirá criação de áreas de construção em solos compatíveis com área urbana já existente, obedecendo a uma lógica de consolidação e coerência” (2), afiançando- mesmo que tal ocorrerá “não criando novos centro urbanos” (3). Pergunta-se:
Como pode a invocada “lógica de consolidação e coerência” (da área urbana já existente, presume-se) passar pelo estímulo à dispersão de novas urbanizações em solo até agora rústico, antes de se conseguir que naquela sejam preenchidos os espaços desocupados, utilizados os edifícios devolutos, reabilitados os que estão degradados, em suma, revitalizados os tecidos urbanos ameaçados pelo abandono dos que deixam de ter recursos para neles viverem ou permanecerem?
Será a consagração destes requisitos coerente com o facto de ter sido eliminada a exigência elementar de as áreas a reclassificar serem contíguas ao solo urbano preexistente, como constava até agora a lei?
Como garantir que esta formulação em termos tão genéricos e imprecisos não irá legitimar argumentações inconsistentes em sede da “fundamentação sumária” que é o que agora unicamente se exige para viabilizar estas reclassificações de solos?
Passará a ser admitida a reclassificação de solos, com vista à urbanização e edificação para habitação, em áreas da REN identificadas como áreas de instabilidade de vertente ou seja, áreas suscetíveis da ocorrência de deslizamentos de terras. Como se compatibiliza com isto a afirmação de que ficam “prevenidos os riscos para pessoas e bens” (4).
Em conclusão: a aplicação deste “regime especial de reclassificação para solo urbano” não conseguirá contribuir para contenção dos preços da habitação, mesmo nas áreas urbanas periféricas; pelo contrário, o seu único efeito palpável será uma potencial proliferação fragmentada de novas urbanizações e empreendimentos imobiliários em solo rústico, viabilizáveis sem avaliação da sua necessidade e aceitabilidade com base em critérios consistentes, mas sim a reboque das dinâmicas de um mercado imobiliário em roda livre.
Na realidade, esta alteração legislativa, sem o dizer, confere a todo o solo rústico que não esteja submetido a um regime restrito de proteção o estatuto de solo urbanizável (solo rústico suscetível de ser urbanizado a qualquer momento em função das conveniências do interessado).
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(1) “Novos terrenos para habitação – uma mudança estrutural” – Artigo de opinião da autoria de Sr. Ministro da Coesão Territorial in jornal Público de 3 de janeiro de 2025
(2) Preâmbulo do DL nº 117/2024
(3) “Novos terrenos para habitação – uma mudança estrutural” – Idem, idem
(4) Preâmbulo do DL nº 117/2024