Sobre a alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial - RJIGT

Belém e São Bento unidos pelas “entorses”

Manuel Carvalho, Público

Quando detectou no decreto do Governo sobre os solos “um entorse significativo”, o Presidente só podia ter uma atitude: mandá-lo para trás.

Luís Montenegro prometeu no último congresso do PSD “gastar o essencial da energia a olhar para a frente” e nesse desígnio não parece haver ponderação que o limite nem barreira que o pare. Na Saúde, nos impostos para os jovens ou nas negociações com a função pública, esse princípio sagrado do fazer coisas, aconteça o que acontecer, tinha já sido consagrado. Na alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, que permite mudar solos rústicos para urbanos com um estalar de dedos, subiu de patamar. Mudar a classificação de solos é uma daquelas medidas com impactes duradouros, mas isso pouco importa; pôr em causa de supetão décadas de ordenamento jurídico e de política de ordenamento e gestão do território exige prudência e debate, mas para o Governo o que importa é “olhar para a frente”. O decreto-lei em questão é perigoso pelo que propõe, mas é ainda mais perigoso pela forma de governar que insinua.

Por partes: a crise da habitação é um problema? É. São necessárias medidas excepcionais para o debelar? Sim. É urgente acelerar a execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)? Sem dúvida. Essas medidas podem implicar uma revisão casuística, logo extraordinária, da classificação dos solos em determinadas cidades ou zonas do país? Talvez. O decreto-lei que o Governo aprovou manhosamente entre o Natal e o Ano Novo vai, no entanto, muito para lá desta equação. No seu voluntarismo, não se incomoda em minar os fundamentos de uma política de ordenamento e de gestão territorial que se construiu contra o facilitismo reclamado pelos interesses (legítimos) dos donos das terras. Não se preocupa em saber com estudos fundados se a mudança do estatuto dos solos resolve o problema, se o mitiga ou se é um cheque em branco. Não se preocupa com alternativas. Custa a entender tantos buracos, principalmente porque o diploma vem de um dos ministros mais sábios e sensatos do actual Governo.

Montenegro e os seus pares não estão sós no facilitismo, precipitação e na falta de exigência. Também o Presidente da República tem pressa em executar as verbas do PRR (honra lhe seja feita, é uma das suas preocupações de sempre) e está disposto a virar a cara aos conflitos jurídicos que atrasem o processo. Marcelo, porém, é um constitucionalista e a sua primeira missão na Terra é proteger as leis que configuram as regras da vida colectiva. Quando detectou no decreto do Governo “um entorse significativo [sic] em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território”, o Presidente só podia ter uma atitude: mandar o diploma para trás. Não o fazendo, está a alimentar uma ideia de país onde a lei não é imperativa, que pode ser torcida sempre que for conveniente ao Governo ou a uma interpretação de interesse geral que ele determine.

É isto que está essencialmente em causa: a subalternização, ou a “entorse” da lei feita pela conveniência da conjuntura ou das boas intenções proclamadas pelo Governo. É o casuísmo ou o livre arbítrio a impor-se à garantia e estabilidade das leis. É uma decisão frágil, que está a ser criticada de forma quase unânime por quem estuda e sabe da política de solos e de ordenamento. Para os contestar, o Governo assume uma pose meio beata, meio cínica: as mudanças não permitiriam a criação de novos polos urbanos nem mexeriam “em certa categoria de solos” da reserva agrícola ou ecológica — se são solos reservados, não deviam ficar todos fora da equação? E para garantir o cumprimento destes princípios, as mudanças teriam de ser autorizadas pelas assembleias municipais. Uma maravilha.

Há em todo este pensamento uma falácia que torna o chumbo, ou a alteração, do decreto-lei obrigatório: a ideia de que se muda o estatuto do solo por dá cá aquela palha; a noção de que sempre que houver dinheiro europeu para gastar, ou uma qualquer necessidade política do momento, o país pode mudar as regras fundamentais da sua gestão territorial. Há nesta forma de pensar um regresso ao passado, quando a ausência de planeamento instituiu o regabofe nos ministérios ou nas autarquias em favor de interesses privados e transformou fatias do território em abcessos urbanísticos irreversíveis, como aconteceu no Algarve. Mas, mais perigoso ainda, há o velho vício da política portuguesa em ceder ao imediatismo ou à intuição até em matérias nas quais se exige permanência e conhecimento. Há o eterno voluntarismo que tende a acreditar que basta um decreto para que os problemas se resolvam.

Pelo debate que, entretanto, Helena Roseta acelerou, sabemos que a mudança em questão não resolve coisa nenhuma. Não vai a tempo de captar as verbas do PRR, cuja programação acaba dentro de dois anos; não resolve os problemas de falta de habitação nas grandes cidades, onde os solos rústicos não abundam ou inexistem; e, ao estabelecer que 70% da construção nos terrenos envolvidos na passagem de categoria para solos urbanos pode ser vendida acima da mediana do mercado, não garante o acesso de muitas famílias da classe média à compra de habitação.

Se não há vantagens, há com certeza problemas: ao permitir que uma simples decisão municipal acrescente valor a um terreno rústico, o diploma vai desencadear uma corrida dos seus proprietários ao mercado. E nessa corrida, há o enorme risco de triunfar o compadrio, o cartão do partido ou a mais visceral corrupção. Não é que, como sugere uma certa esquerda, o universo das autarquias seja à partida mais volúvel do que a penumbra dos gabinetes de Lisboa — basta ver os grandes casos de corrupção que se arrastam pelos tribunais. Mas a vida é o que é: havendo dinheiro em jogo com uma decisão política, o risco aumenta. A redução do mercado dos solos rústicos pode ainda ter impacte nos valores da terra usada na agricultura, agravando os custos de um sector crucial para o país.

Haverá casos de terrenos rústicos que não justificam esse estatuto e devam, por isso, ser tornados aptos para urbanização? Claro que há e nesses casos tem de haver mecanismos legais que o permitam. Mas o processo que deve analisar e decidir essa opção tem de ser muito mais fundamentado, mais blindado à especulação ou à corrupção e muito mais alinhado com o interesse público do que o mecanismo previsto na mudança da lei.

É também por isso que o Governo devia ter a humildade para constatar que há na opinião pública dúvidas legítimas sobre o que está em causa para propor ele próprio a reapreciação do documento. Portugal demorou anos a erguer uma política de ordenamento e de gestão do território e essa obra está longe de ter terminado — como o comprovam frequentes violações ou os atrasos indesculpáveis das revisões dos PDM. Torcer um modelo discutido e em construção através de soluções fáceis justificadas por razões conjunturais é regressar ao passado que levou muitas das nossas cidades ou paisagens ao limiar do precipício.

Jornalista