A insustentável entorse da Lei de Solos
Entra hoje em vigor o Decreto-Lei n.0 177/2024, conhecido na opinião pública como a alteração à Lei de Solos, assim se designando a Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, Ordenamento do Território e Urbanismo (LBGPPOTU).
Entra em vigor na sua plenitude, produzindo todos os efeitos desejados pelo Governo, enquanto se aguarda, não se sabe até quando, que os senhores deputados discutam as alterações já negociadas entre PS e PSD.
Voltemos, então, ao princípio de tudo.
O último período natalício ficou marcado pela promulgação no dia 26, de repente, de uma proposta de alteração legislativa conhecida na opinião pública como sendo uma alteração à lei dos solos. O senhor Presidente da República promulgou a lei, "apesar de constituir uma entorse significativa em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território, a nível nacional e local".
Esse acto natalício do Presidente espoletou uma onda geral de preocupação e uma forte reacção por parte da sociedade civil, estendendo-se das associações que defendem o ambiente - da Liga para a Protecção da Natureza, à Zero, passando pelo GEOTA-, aos que pugnam pela defesa de uma política pública de habitação, como acontece com a Rede H, cuja Carta Aberta, aqui publicada, provocou uma mobilização sem precedentes, incluindo as associações que reúnem urbanistas, arquitectos, geógrafos entre muitas outras.
A Assembleia da República, afastada do processo por opção do Governo, invocando ser esta uma lei de desenvolvimento do anterior RJIGT (Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial), e não uma profunda alteração à Lei de Bases, tese acolhida pelo Presidente da República, tomou a iniciativa, graças ao BE, ao PCP, ao Livre e ao PAN, saliente-se, de chamar o debate ao Parlamento e suscitar a audição de associações e especialistas. Em boa hora o fizeram, prestando um inegável serviço à democracia e à defesa da política pública de ordenamento do território e à política de habitação.
As audições parlamentares permitiram fazer chegar aos senhores deputados um conjunto alargado de preocupações que convergiram na necessidade de revogar a lei. Revogar a lei e iniciar um debate para permitir melhorar o que está mal na gestão do território e permitir ao país obter todo o benefício que uma lei como a Lei de Bases permitirá, caso seja aplicada na sua totalidade, desde logo, pelo recurso à afectação social das mais-valias urbanísticas. Mecanismo que a presente lei inutiliza completamente o que impossibilita um financiamento justo da política pública de habitação. Uma larga maioria, que associou o PS à AD e que contou com o apoio do Chega e da IL, impediu a revogação da lei.
Aqui chegados, tendo o debate público em torno da Lei de Bases atingido um nível mínimo para uma sociedade democrática, importa revisitar os argumentos, ou álibis, que estiveram na base da famigerada entorse e verificar como reagiram ao debate.
Argumentou o senhor Presidente em favor da promulgação com a "urgência no uso dos fundos europeus e no fomento da construção de habitação".
O debate tornou público aquilo que já se sabia antes do Natal: não há em Portugal falta de solos urbanos para edificação. Dito de outra forma, no interior dos perímetros urbanos há em média, no continente, cerca de 50 por cento de solos urbanos que não foram utilizados. O Relatório do Estado do Ordenamento do Território (REOT) de 2024, mostra, no capítulo dedicado ao Sistema Urbano, no tema "Consumo de Solo", que "a proporção de solos urbanos do continente que se encontrava edificada em 2021 era em média de 50%'' e dá conta da evolução positiva registada no controlo da edificação em solo rústico. (pág.69).
A urgência de utilização dos fundos europeus é um argumento poderoso que toca na opinião pública. Num país que tem recursos limitados não faz sentido perder verbas do Plano de Recuperação e Resiliência por questões como a falta de solos para edificar. No entanto, os fundos europeus destinados à Componente C2, Habitação, estão, há muitos meses, integralmente contratualizados, não existindo o mínimo risco de perda de qualquer verba por falta de solos urbanos. O Governo não foi capaz de mostrar um único caso em que isso pudesse acontecer.
Questionado na Assembleia da República pela líder do BE o senhor primeiro-ministro assumiu que esta lei não irá permitir construir mais habitação financiada pelo PRR. Nenhuma casa será construída com financiamento do PRR com base nesta lei, disse ele. Nós acreditamos.
Admitir a reclassificação sem a prévia demonstração de que existe uma necessidade real de solo urbano no interior do perímetro urbano de cada concelho não pode ser considerado uma justificação válida para se promulgar a lei. Invocar a perda de fundos europeus provocada pela inexistência deste decreto carece do mínimo rigor.
Argumentou o senhor Presidente em favor da sua decisão com a "intervenção decisiva das assembleias municipais". Ora a presente lei contraria de forma explicita o regime a que está sujeita a avaliação dos efeitos de determinados planos e programas no ambiente, consagrado no Decreto-Lei n° 232/2007, de 15 de Junho. Ao mesmo tempo que torna dispensáveis o REOT e a Carta Municipal de Habitação (CMH) determina que eles podem ser substituídos por pareceres técnicos dos serviços municipais ou de outra entidade, ainda que privada, contratada com competência técnica para o efeito.
Será que todas as entorses, atrás referidas, a um processo democraticamente consolidado ao longo de décadas, pode ser aceitável apenas graças à intervenção das assembleias municipais? Vejamos, então, o que disseram as assembleias municipais, elas próprias, sobre esta alteração. Num comunicado, a que aqui é feita referência, a Associação Nacional das Assembleias Municipais alerta que, com a alteração à lei, é necessária "a capacitação desses órgãos municipais que, na sua visão, passa a ser absolutamente necessária para acompanhar este aumento de responsabilidades".
Julgo que não serão necessários mais comentários. Quantos de nós consideramos que, nos nossos concelhos, as assembleias municipais, no quadro legal em que actuam, com os recursos que lhe estão afectos, dispõem da capacidade e dos meios de apoio à decisão para assumirem responsabilidades desta natureza? As autarquias, e o poder desproporcional dos seus presidentes, são um tema tabu na sociedade portuguesa, tanto mais numa altura em que temos pela frente um ano de eleições autárquicas. Contudo, quantos de nós podem falar em gestão eficiente dos recursos humanos e financeiros, quando falam da sua autarquia? Afinal, qual foi a realidade que a elaboração das Estratégias Locais de Habitação veio pôr a nu?
Fica para o fim um dos mais poderosos argumentos esgrimido pelo Governo a favor da lei: o da construção a preços moderados. Esta foi uma formulação supostamente inovadora. Acontece que várias entidades, com destaque para o estudo da autoria do arquitecto Nuno Travassos Travassos [1] divulgado pela Rede H, demonstraram que o preço moderado é superior na maioria dos concelhos aos valores de mercado e implicaria uma insuportável taxa de esforço para as famílias. Um embuste.
O facto de os diversos álibis carecerem de qualquer fundamento legitima que se façam as seguintes perguntas: afinal a quem se destina esta lei? Quem são os verdadeiros interessados na sua aprovação? Que projectos aguardam que ela entre em vigor? Em que concelhos, em que partes do território, e quem são os seus autores/promotores?
Não existindo uma única razão baseada no interesse público que justifique a aprovação da lei, sabemos hoje que a entorse promulgada pelo senhor Presidente constitui - as alterações a acertar serão puramente cosméticas - o maior atentado ao sistema de ordenamento do território e de gestão territorial praticado neste século no nosso país. Os latifundiários da renda imobiliária agradecem reconhecidos.
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[1] Doutorado em Urbanismo pela Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa; Engenheiro Civil pelo IST