Sobre a alteração do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial - RJIGT
Urbanização em solo rústico e a crise da habitação: uma falsa associação
No dia 30 de dezembro de 2024, enquanto Portugal recuperava da ressaca de Natal e se preparava para celebrar o ano novo, o governo de direita presidido por Luís Montenegro publicou o Decreto-Lei n.º 117/2024, que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio). A alteração mais relevante diz respeito ao artigo 72 deste último, relativo à reclassificação para solo urbano – nomeadamente, a transformação de solos “rústicos” em solos urbanizáveis sem alteração do plano de ordenamento municipal. Trata-se, por definição do Regime Jurídico, de uma operação “excecional”: em sentido legal, pois constitui uma exceção legal ao processo regular de classificação dos solos nos planos municipais; e no sentido literal, por ter de ser implementada em situações verdadeiramente excecionais de urgente necessidade de solos não disponíveis de outra forma.
Sem mudar a letra da lei na referência à excecionalidade, o DL 117/2024 simplifica o procedimento e cria um “regime especial de reclassificação para solo urbano com finalidade habitacional”. Como explica a retórica do preâmbulo ao DL, trata-se de tornar a reclassificação dos solos rústicos num pilar da estratégia de incremento da oferta habitacional.
Trata-se, ao mesmo tempo, de um retrocesso de várias décadas na gestão do território, escancarando a porta à expansão descontrolada das áreas urbanizadas e à especulação – a simples alteração de um solo de rústico para urbano multiplica o valor do mesmo, até antes de se ter construído qualquer coisa. Foram, de facto, muitíssimas as reações de pessoas e entidades com competência sobre o tema – veja-se, por exemplo, a Carta Aberta da Rede H – Rede Nacional de Estudos de Habitação, que recolheu centenas de subscrições e contribuiu para que o DL fosse levado à Assembleia da República onde, contudo, não se esperam alterações estruturais. A carta aberta clarifica a falácia de um dos principais álibis usados pelos defensores do DL: «não existe falta generalizada de solos urbanos nos perímetros urbanos», isto é, se o problema fosse a necessidade de construir mais casas, não estaria a sua causa na falta de solos urbanizáveis.
Ainda que ninguém possa negar que em Portugal o preço da habitação se tornou incomportável para os rendimentos da maioria (praticamente a totalidade) de quem trabalha e vive no país, será que precisamos mesmo de construir mais casas? Mais construção é a resposta que, desde sempre, oferece a direita – e, fundamentalmente, também o Partido Socialista, que tinha já avançado com estímulos à construção e uma simplificação da reclassificação dos solos rústicos, mas só para promoção pública de habitação acessível. Este DL complementa o anterior pacote do governo de direita, denominado, de forma explícita, Construir Portugal. Para os pensadores de direita, não há dúvidas. Veja-se, por exemplo, o que diz José Mendes:
se não fosse um assunto sério, daria vontade de rir. É por demais evidente que existe em Portugal um problema de escassez na oferta de habitação, sobretudo no que se refere ao segmento suportável pela classe média, chamem-lhe acessível, moderada ou outro nome qualquer.
Será mesmo para rir? O argumento que é normalmente utilizado – igualmente mencionado no preâmbulo do DL 117/2024 – é o da redução, nas últimas duas décadas, das novas construções. O que esse argumento não diz, contudo, é que menos construção não significou “menos casas”. Nas últimas duas décadas, o rácio de casas disponíveis para núcleos domésticos existentes não diminuiu. Se se construiu menos, sim: porque a construção das décadas anteriores colmatou as carências quantitativas que vinham da época do Estado Novo e porque a população parou de crescer. Dizer, neste contexto, que construir menos causou uma ausência de habitações seria como dizer que não comer depois de saciados causa fome.
E saciados estamos à vontade. Há em Portugal dois milhões de habitações não usadas para residência: mais de um milhão de residências secundárias, sazonais ou usadas como apartamentos turísticos (isto é, retiradas do mercado da habitação) e mais de 700 mil devolutas. E, contra o que muitos pensam, os devolutos não se colocam em contextos de escassa pressão urbanística: há 50 mil só na cidade de Lisboa.
Neste contexto, construir mais ajudaria a baixar os preços? A resposta é simples: não. Como demonstrado pelos estudos de habitação baseados em décadas de evidências científicas – aqui a síntese do argumento por Josh Ryan-Collins –, não é o encontro entre procura e oferta que empurra os preços da habitação, mas a disponibilidade de liquidez. Antes da crise, foi o crédito a baixo custo (estimulado pelo Estado) a aumentar os preços enquanto se construía muito mais do que se procurava. Agora, é a liquidez de investidores, financeiros e não só, muitos dos quais internacionais, que inflaciona os preços: repare-se que o incremento das taxas de juro da conjuntura pós-pandémica fez reduzir a procura mas não parou o crescimento dos preços – como demonstrado no estudo de dois economistas do Banco de Portugal que, contudo, acabam na falácia de defender a resolução do problema com… mais construção!
Dir-se-ia que o que serve é construir habitação a preços baixos – «chamem-lhe acessível, moderada ou outro nome qualquer», frisava Mendes acima. Chamemos como quisermos: mas e a substância? O DL 117/2024 condiciona a reclassificação a que «700/1000 da área total de construção acima do solo se destine a habitação pública, ou a habitação de valor moderado». Só que esta última é definida como aquela em que «o preço por m2 de área bruta privativa não exceda o valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o território nacional ou, se superior, 125 % do valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o concelho da localização do imóvel, até ao máximo de 225 % do valor da mediana nacional». Os últimos dados do INE disponíveis colocam a mediana do preço de venda nacional a 1,736€/mq, colocando o limite superior nas cidades de maior pressão nos 3,906€/mq: uma moderação evidentemente incomportável para quem aufere rendimentos em Portugal, feita à custa da expansão incontrolada do solo urbanizado.
A conclusão é simples: fomentar a construção fora dos planos de ordenamento do território só serve para fomentar a especulação. Paremos de usar a crise de habitação como álibi. Há, hoje em dia, só uma forma de tornar a habitação acessível para quem vive em Portugal: regular o mercado, a partir do controle de rendas – tema que não poderei, contudo, desenvolver aqui.
Simone Tulumello é investigador auxiliar em geografia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Interessa-se pelas dimensões globais da urbanização, com foco em temas como habitação, violência urbana e imaginários urbanos.